MAGAZINE SOUJAR

sábado, 10 de dezembro de 2011

Pouso forçado no oceano

Pouso forçado no oceano
Geraldo Knippling

A linha para Nova Iorque vinha apresentando muito bons resultados, conquistando a maior fatia do mercado. Procurava-se contornar da melhor maneira possível as deficiências apresentadas pelos complicados motores turbo-compound.
Na madrugada do dia 16-8-57, no vôo 850, vindo do Rio de Janeiro, escalamos normalmente Belém, onde reabastecemos para a etapa seguinte: Ciudad Trujillo (hoje Santo Domingo), na República Dominicana. Faziam parte da minha tripulação o 1° oficial Cmte. Mancuso e os Cmtes. Spohr e Raposo em treinamento, os Engs. de vôo Campani e Squires, o radioperador Salomão e uma equipe completa de comissários e comissárias.
Enquanto abasteciam o avião com gasolina e material de comissaria, já estava formando-se um leve nevoeiro sobre a pista. Estas condições são muito comuns em lugares de extrema umidade, como nos trópicos, quando a temperatura baixa um pouco na madrugada, propiciando a condensação do ar úmido e provocando cerração. Note-se que nessa época ainda não havia sistema de ILS* em Belém; as aproximações eram feitas pelo gônio** obsoleto da década passada. Era uma operação do tipo “arco e flecha”, geralmente descendo até a altura mínima sobre a mata, procurando encontrar as luzes de demarcação da pista pela frente.
Aproximadamente às 2h decolamos com peso máximo, rumo à República Dominicana. Estávamos em plena subida, tendo cruzado a Ilha de Marajó, a aproximadamente 1.500 m de altura, quando subitamente o motor 2 perdeu toda a potência devido à uma falha interna. O único recurso foi “cortar” o motor e acionar o “passo bandeira”.
Como o aeroporto de Belém estava fechando com nevoeiro e a visibilidade já estava muito reduzida, a solução foi seguir em frente com os três motores operantes, o que até era considerado uma operação normal, portanto, sem declarar emergência. Apagamos as luzes que iluminam as asas para não assustar os passageiros ao verem uma hélice imobilizada; eles só se dariam conta pela manhã, ao clarear do dia. A rotina a bordo seguia normalmente e às 7h foi servido um lauto café.
Naturalmente avisamos a direção da companhia, pelo rádio, sobre o ocorrido. Também ficamos sabendo que em Ciudad Trujillo não havia motor de reposição; tinha sido usado há duas semanas. Isto significava um atraso de vários dias na República Dominicana, com o avião parado, dando prejuízo. Foi então decidido deixar os passageiros em Santo Domingo e levar a aeronave com três motores até Nova Iorque, onde seria trocado o motor. Esta operação de translado com três motores também era considerada normal, desde que o peso fosse reduzido e não fossem levados passageiros. Pousamos normalmente e a aeronave foi preparada para o vôo de translado.
Às 11 da manhã decolávamos com três motores rumo a Nova Iorque (somente a tripulação técnica e quatro comissários). Devido à falta de um motor, a aeronave percorreu toda a pista para conseguir sair do chão. Também a subida foi muito mais lenta que de costume. Tudo transcorria bem e já estávamos sobre o oceano, atingindo o nosso nível de cruzeiro de 3.000 m. Aí aconteceu o inesperado: a hélice do motor 4 ficou descontrolada e foi para o “passo mínimo”, “disparando”, atingindo uma rotação absurda com um ruído estarrecedor.
Abro um parênteses para explicar o funcionamento dessas hélices “hidromáticas”. O ângulo das pás é controlado com força hidráulica por um “governador”, para manter sempre uma determinada rotação. Isto funciona dentro de um certo limite. Quando há uma pane no motor e é comandado o “passo bandeira”, como já vimos antes (página 49), a hélice vai para uma posição de 90 graus, ficando imóvel, sem oferecer resistência ao avanço. Infelizmente, se bem que com freqüência mais rara, também podia acontecer o contrário, quando o “governador”, devido a uma pane, perdia o controle das pás e estas, acionadas pela força centrífuga, iam para o “passo mínimo” ou menos ainda, para o “passo chato”, exatamente o contrário do “passo bandeira”. Nessas condições, a resistência ao avanço é tremenda, mesmo com o motor funcionando. A hélice atinge rotações absurdas, em torno de 5.000 a 7.000 rpm e a força centrífuga é tamanha que o motor hidráulico que comanda a hélice não consegue tirá-la dessa posição. É uma situação de extrema emergência.
Voltamos à nossa realidade sobre o mar. Nessas condições não existe volta, já que o mecanismo hidráulico que controla a hélice não tem condições de vencer a força centrífuga. Além do ruído extremo, o avião começou a vibrar tão violentamente que não se conseguia sequer ler os instrumentos do painel. Os comandos acompanhavam essa vibração de forma tal que as mãos ficavam dormentes. Descomprimimos logo a cabine. Reduzimos a velocidade ao mínimo, sem que o quadro se modificasse. Já tínhamos certeza de um fato irreversível: com a altíssima rotação da hélice não haveria mais lubrificação suficiente para seu eixo e este, mais cedo ou mais tarde, iria romper-se. Era esse desfecho que estávamos aguardando, vítimas de uma verdadeira “roleta russa”! Isto porque, ao desprender-se do motor, a hélice tinha dois caminhos: ou atingia o avião causando uma tragédia ou iria para o outro lado em direção ao mar. Foram minutos de extrema tensão, na esperança de a hélice optar pelo caminho livre ao oceano. De súbito, após um repentino aumento da vibração, um estouro....e uma mudança na vibração junto com o alarme de fogo no motor 4! A hélice, junto com toda a parte dianteira do motor, desprendeu-se e este pegou fogo. E ainda pior, bateu na hélice do motor 3 ao lado, que ficou totalmente desbalanceado. Imediatamente acionamos os extintores de incêndio e conseguimos controlar o fogo. Entretanto, a hélice avariada sacudia tanto a aeronave que temia que fosse desintegrar-se. Tivemos que “cortar” o motor 3 e comandar o “passo bandeira”, que só conseguimos após várias tentativas. Foi um grande alívio, momentâneo, pois as vibrações desapareceram e tudo, aparentemente, estava mais tranqüilo.

Mas lá estávamos nós, sobre o oceano, com apenas o motor 1, na ponta da asa esquerda, funcionando com potência máxima contínua. Evidentemente íamos perdendo altura, pois não inventaram ainda uma aeronave de quatro motores que voe com um só. Tratamos logo de preparar o pouso na água. Pelos meus cálculos, tínhamos ainda uns 15 minutos até chegar à superfície. Não havia tempo nem condições para alijar combustível. Avisamos pelo rádio sobre a emergência, dando a nossa posição e requisitando auxílio. Como era o motor 1, o de fora, em funcionamento, isto provocava uma forte tendência de ir para a direita, que precisava ser contida com uma deflexão quase total do leme para a esquerda, fato que prejudicava as condições de vôo no todo. À medida que nos aproximávamos da superfície do oceano, dava para ver que havia vagas e ondas. As vagas muito grandes e, sobre essas, as ondas menores, impulsionadas pelo vento, em direção diferente. Forçosamente seria preciso pousar contra o vento, mas nunca contra as vagas.
Os últimos preparativos consistiram em abrir as saídas de emergência, sobre as asas, apesar do vento que entrava e do forte ruído que causava. A razão desse procedimento era para evitar que, com uma torção da fuselagem, no pouso, as saídas ficassem empenadas, impossibilitando sua abertura. Também pedi aos demais tripulantes para sentarem-se na parte central.
Chegou a hora. Já estávamos a poucos metros da superfície. Comandei todo o flap para reduzir a velocidade de impacto ao mínimo, mesmo assim ainda 205 km/h. Escolhi um rumo em diagonal contra as vagas e contra o vento que era um meio termo para não bater nas vagas de frente e ainda ter algum vento de proa. Reduzi toda a potência do motor 1 para fazer contato com a água no “lombo” de uma vaga. Foi uma desaceleração violenta; mas como todos estavam com os cintos bem presos não houve ferimentos. No final da desaceleração o avião deu uma guinada para o lado, que arrancou a cauda. A cabine de comando mergulhou totalmente na água, parecia um submarino; e aí, silêncio, silêncio total (ou seria sepulcral?). A cabine de comando veio novamente à tona e ouvia-se o borbulhar da água invadindo a aeronave. Confesso que, depois de todo o barulho, tensão e vibração a que estivemos submetidos anteriormente, esse borbulhar, junto com o leve embalo das ondas até que era agradável e reconfortante. Mas, não havia tempo para sofismas, pois o avião estava afundando. Rapidamente desatamos nossos cintos. Quando saí do meu assento já havia água pelos joelhos.
No Super-Constellation os barcos salva-vidas, infláveis, em número de 4, estavam acondicionados na parte superior das asas. Ao lado da saída de emergência havia uma alavanca que, quando acionada, abria os devidos compartimentos, sendo os barcos expelidos e inflados automaticamente, prontos para serem usados. Entretanto, para azar nosso, os fabricantes deixaram de prever alguns detalhes de suma importância. No presente caso, como em qualquer pouso na água, era preciso arriar todo o flap para diminuir a velocidade de toque ao mínimo (o trem de pouso ficava recolhido). Com o impacto, evidentemente os flaps eram arrancados e, como foi no nosso caso, ficavam ferros e partes de metal retorcidos expostos, junto às asas, onde deveriam flutuar os barcos inflados. Para decepção nossa, constatamos que todos os barcos estavam furados. Este foi o quadro com o qual me deparei ao sair, como último, pela saída de emergência, sobre a asa, varrida pelas ondas.
Como todos os tripulantes cabiam num barco só, enquanto havia tempo escolhemos o barco em melhores condições, tentando, com as mãos, impedir a entrada de água pelo fundo e procurando esgotá-la com um balde de borracha. Um barco inflável é muito difícil de remar; é preciso deixar que o vento o leve. Antes de sair das proximidades do avião, conseguimos resgatar um dos comissários que estava sentado na cauda, que se desprendeu. O outro que também lá estava, infelizmente não vimos mais, fato que muito enlutou esta nossa operação, até o momento bem sucedida.
Depois de mais um curto espaço de tempo, vimos o nosso querido VDA submergir completamente, deixando muitas bolhas e uma mancha de óleo na superfície. Ficamos sozinhos, esperando por um socorro que forçosamente deveria vir.
Depois de muito tempo, horas, apareceu um avião da marinha americana, deu algumas voltas mas não conseguiu amerissar devido às ondas; lançou, então, um outro barco inflável, a nosso ver novinho e sem furos. Só que eles erraram a mira e o barco caiu muito longe da nossa posição. Fizemos um esforço grande, remando com as mãos, para chegar até lá. Foi inútil; como estava vazio e leve, o vento o foi levando para sempre e nós novamente ficamos sozinhos, mas já não tão longe da terra.

Comandante Geraldo Knippling sendo entrevistado pela imprensa da República Dominicana
Ao cair da tarde fomos derivando para a costa norte da Republica Dominicana. A certa altura já estávamos avistando uma praia (ou era miragem?) e até pessoas se movimentando por lá. Certamente logo nos viriam buscar. Mas nada; a praia foi crescendo e as pessoas também, mas parecia que ninguém se importava conosco. Finalmente chegamos a ouvir o barulho da arrebentação e já antes de o inflável chegar na areia pulamos na água para dar os últimos passos em direção à terra firme. Os caboclos que lá estavam nos receberam muito bem e quando perguntamos porque não foram nos resgatar quando nos avistaram pela primeira vez, responderam no melhor castelhano: “nós não entramos na água, por aqui há muitos tubarões”!
Pouco mais tarde veio o pároco da aldeia que nos levou até a igreja para uma missa de ação de graças. Por meio de um telefone muito primitivo, o único da vila, conseguimos comunicar-nos com a VARIG em Ciudad Trujillo.
Fomos de caminhão até uma outra aldeia onde havia uma pista de terra e de lá fomos resgatados por um C-47 cargueiro que nos levou até a capital. Entramos no hotel de luxo El Embajador, sujos, molhados e sem roupas adequadas, onde nos aguardava a imprensa. À noite, o gerente da VARIG conseguiu que fosse aberta uma loja da cidade para que comprássemos roupas, sapatos, etc.a fim de resgatarmos o aspecto de civilizados. Nos recuperamos rapidamente, para em poucos dias assumir novamente a nossa atividade rotineira.
          
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