MAGAZINE SOUJAR

terça-feira, 10 de setembro de 2013

PP VJK Acidente do 707 na África


O ano de 1987 mal havia começado. Madrugada quente e estrelada naquele 3 de janeiro. Noite escura, de lua nova, no aeroporto internacional Felix Houphouet Boigny. O acanhado terminal recebia poucos passageiros. Aparentemente, o início do ano ainda inibia a vontade de viajar para muita gente.
Num dos 25 balcões do aeroporto, apenas 39 passageiros apresentaram-se para fazer o check-in no vôo da Varig com destino ao Rio de Janeiro.
Naquela noite, o vôo RG 797 seria operado pelo Boeing 707-379 de prefixo PP-VJK. Aquele não seria um vôo qualquer para o veterano Boeing 707. Seria na verdade o último vôo do jato com as cores da Varig.
Depois de pousar no Galeão, o VJK seria definitivamente retirado de serviço na Varig, depois de voar pela empresa por 19 anos.
Operada pela companhia ininterruptamente desde 4/11/1968, a aeronave, naquele começo de 1987, o Boeing 707 já tinha novo dono: a FAB, Força Aérea Brasileira, que iria utilizá-lo em missões de transporte, com a matrícula FAB 2400.
Além dos 39 passageiros, o Boeing levava ainda 12 tripulantes, liderados pelo comandante Julio César Carneiro Corrêa, de 38 anos.
Com 11 mil horas de vôo, Carneiro tinha 1.198 horas no comando do Boeing 707. Piloto-instrutor, naquele RG797 estava acumulando a função de ensinar ao seu co-piloto, Nélson Fontina de Figueiredo, a arte de pilotar o Boeing 707.
A veterana aeronave é da primeira geração da aviação a jato. Isso significa que é um modelo que exige grande perícia e experiência para ser pilotado.
Sem contar com praticamente nenhum sistema computadorizado, é um avião “das antigas”, que exige mesmo que os pilotos efetivamente “voem” o avião. Se comparado aos jatos atuais, que podem ser pilotados com o simples apertar de botões,
o 707 é mesmo um avião de “pé e mão”, ou como preferem os profissionais de cabine: o 707 é um “avião de piloto”, isto é, exige mesmo a atuação direta e precisa de quem o comanda.
A partida noturna de Abidjan transcorreu sem problemas. O vôo estimado para durar pouco menos de 9 horas, deveria ser pura rotina. E assim foi, até aproximadamente 20 minutos depois da decolagem, quando o Boeing já estava a 200 km a oeste de Abidjan. Naquele instante, soou na cabine o alarme de fogo no motor Nº 1, o que fica na posição externa da asa esquerda, lado em que se senta o comandante.
Apesar do ensurdecedor ruído do alarme, a tripulação não foi pega de surpresa. Na véspera, no vôo de ida entre o Brasil e a Costa do Marfim, o mesmo alarme havia soado em vôo, poucas horas antes da chegada à África. O motor fora desligado por precaução e a aeronave pousou em Abidjan sem maiores problemas.
Inspecionado pelos mecânicos da Air Afrique, companhia que prestava manutenção à Varig na Costa do Marfim, constatou-se que a pane estava nos sensores que registram a ocorrência de fogo nos motores: tratava-se de um alarme falso. De qualquer forma, no caso do vôo de regresso, o alarme começou a soar muito cedo, logo após a decolagem.
Precavido, o Cmte. Corrêa optou pelo desligamento do motor. Corrêa tinha agora que optar entre seguir com três motores sobre o vasto Oceano Atlântico Sul ou retornar à segurança da terra firme, voltando à Abidjan.
Nesse momento, levamos você para dentro da cabine de comando do 707, dois minutos depois do início do alarme de fogo. E para os trinta minutos finais do vôo 797 da Varig, quando a tripulação começa a discutir qual procedimento adotar em face ao alarme soando na cabine de comando.
ABJ Torre do aeroporto de Abidjan
Cap. Carneiro: Comandante – Júlio César Carneiro Corrêa
F/O Figueiredo: Primeiro Oficial – Nélson Figueiredo
F/E Cardoso: Engenheiro de Vôo – Eugênio Cardoso
Cmro.: Comissário de vôo – (não identificado)
Início da gravação: 30 minutos antes do impacto:
F/E Cardoso: O mecânico da Air Afrique olhou e disse que não tinha nada. Ô Carneiro, quer uma opinião?
Cap. Carneiro: Se for uma opinião para atravessar o Atlântico com isso aí tocando (o alarme de fogo) eu acho difícil.
F/E Cardoso: Os parâmetros do motor estão todos normais.
Carneiro toma a decisão e instrui o primeiro oficial Figueiredo:
Cap. Carneiro: Chame o controle de Abidjan e informe que vamos voltar.
F/O Figueiredo: Abidjan, boa noite, Varig 797. Informamos que temos problemas técnicos de indicação no motor 1. Solicitamos vetoração para imediato regresso ao aeroporto.
A torre de Abidjan aceita o pedido e imediatamente autoriza o 707 a iniciar o regresso. O Cmte. Carneiro então chama, pelo interfone, o chefe de cabine e informa que o Boeing teria que voltar para Abidjan.
A seguir, ordena que o comissário dê a má notícia aos passageiros.
Cap. Carneiro: Pode fazer o speech e avisar os passageiros que vamos voltar.
A tripulação então inicia os procedimentos para pouso em Abidjan. O peso da aeronave é verificado e constata-se que, com 248.000 lb de peso (112.5 t) poderia pousar diretamente, sem necessidade de alijar combustível. Desde a decolagem de Abidjan até aquel momento, o 707 já havia consumido 10.000lb de JET A-1. Nesse momento, o engenheiro de vôo Cardoso informa que efetivamente parece haver um problema no motor Nº 1:
F/E Cardoso: Ô Carneiro, a temperatura do combustível do motor Nº1 está muito alta.
Cap. Carneiro: Bom, então está tudo certa aí para a gente cortar esse motor? Está tudo ok aí? Então vou cortar o Nº1.
F/E Cardoso: Não vamos mesmo precisar dele. Se precisarmos, depois, na chegada, podemos religar.
Pouco depois, entra na cabine de comando um comissário, para dar um aviso à tripulação técnica:
Cmro.: Comandante, tem um passageiro lá atrás reclamando de trepidação.
Cap. Carneiro: Agora vai começar a aparecer reclamação de tudo.
F/O Figueiredo: Talvez tenha sido pela redução de potência dos motores para a descida.
Cap. Carneiro: (ao F/O Figueiredo): Chame Abidjan e peça instruções para descida. E avise a Air Afrique que vamos precisar de manutenção.
O F/O Figueiredo solicita e recebe as instruções de Abidjan. Em seguida, contata a Air Afrique em outra freqüência e avisa do retorno, solicitando a atenção de mecânicos após a chegada. Logo depois, porém, outra anomalia é detectada pelo engenheiro Cardoso:
F/E Cardoso: Estamos com um vazamento de combustível alí.
Cap. Carneiro: O quê? Vazamento de combustível? Onde?
F/E Cardoso: Tá vazando combustível pra caralho!
Nos minutos seguintes, os tripulantes tentam verificar a existência ou não do vazamento, mas minutos se passam e voltam a tocar no assunto. Analistas acreditam que esse fato pode indicar que houve um erro de leitura por parte de Cardoso ou até mesmo a falsa indicação de um instrumento. De qualquer forma, nos minutos seguintes, vários
procedimentos de cheque são executados em rápida sucessão.
F/E Cardoso: Treze mil libras de peso… olha os indicadores… estão uma merda… problema…
Nesse instante, volta à cabine de comando o comissário:
Cmro.: Comandante, um passageiro na primeira classe está reclamando de um ruído sob a poltrona.
Os três profissionais da cabine de comando imediatamente reagem, irritados contra a reclamação. Entre outras frases, uma se destaca: “Vai ver que é a perna dele tremendo” , diz um dos tripulantes técnicos. Minutos depois, o co-piloto Figueiredo faz um comentário lúgubre, por profético.
F/O Figueiredo: Estamos levando um defunto ilustre. E tá podre…
Cap. Carneiro: O quê?
F/O Figueiredo: É, estamos levando um defunto ilustre e tá podre. Mas aguenta até o Rio…
Esse comentário de Figueiredo foi uma referência ao fato do PP-VJK já estar “morto” para a Varig, isto é, com sua carreira encerrada. Os pilotos sabiam que aquele era o último vôo programado para o 707 na Varig e que a aeronave já havia sido vendida à FAB. O que eles ainda não poderiam imaginar é que, de fato, aquele seria de fato o último
vôo do Boeing. O comissário faz mais um comentário:
Cmro.: Um passageiro diz que viu uma labareda…
Cap. Carneiro: Mas como? Tem fogo lá?
F/E Cardoso: Não.
Cap. Carneiro: Mas o motor tá apagado, né?
F/E Cardoso: É, olha aí, tá apagadão.
O comissário volta à cabine e, nos minutos seguintes, a tripulação relaxa um pouco. Conversam sobre a mudança de planos, sobre o fato que demorarão mais a voltar ao Rio. Comentam que têm saudade de alguns restaurantes da Cidade Maravilhosa e fazem planos de sair para comer tão logo retornem ao Brasil. Minutos depois, as luzes da Cidade de
Abidjan começam a ser vistas desde a aeronave.
Cap. Carneiro: Olha aí Abidjan. Está claro.
A torre do aeroporto africano oferece a pista 03 para pouso, uma aproximação mais curta para o 707 da Varig, entrando diretamente com curva à esquerda, numa proa praticamente norte. A noite escura, sem lua, embora com ótima visibilidade, faz com que Carneiro peça a aproximação pela cabeceira norte, pela direção oposta. Carneiro optou
em pousar pela pista 21, pois esta possuía instrumentos de aproximação, ao passo que na cabeceira 03 a aproximação só poderia ser visual.
Mais uma vez, nota-se a preocupação do Cmte. Carneiro em operar o 707 da forma mais segura possível.
Mas, para poder pousar na pista 21, o 707 teria de fazer um vôo mais longo e uma aproximação mais complicada. Primeiro teria de sobrevoar o VOR sobre o aeroporto, iniciar o afastamento e realizar uma curva de praticamente 270º para entrar na reta final. Todas essas curvas seriam feitas sobre a asa esquerda, justamente a que menor sustentação
provinha ao Boeing, pois o motor Nº1, situado na posição externa dessa asa, estava desligado. Aparentemente, o Cmte. Carneiro não se preocupou com isso e prosseguiu assim mesmo para a pista 21, após ser autorizado pela torre de Abidjan.
Os tripulantes então iniciam o check pré-pouso, que foi feito levando em consideração o motor desligado. O Boeing voava a 900 m de altura e a 370 km/h e finalmente entrou na perna do vento para a pista 21, ou seja, voando no rumo norte. O Boeing não estava configurado para pouso ainda: Carneiro optou por voar sem a utilização dos flaps e sem
abaixar o trem de pouso. Essa decisão deve ter sido tomada em função da assimetria de potência causada pelo desligamento do motor Nº1.
Carneiro deve ter optado por configurar o 707 para pouso apenas quando estivesse alinhado com a pista 21. De qualquer maneira, a não-utilização dos flaps aumentou a velocidade mínima necessária para manter a aeronave em vôo, conhecida como velocidade de estol. O Boeing teria de manter uma velocidade maior do que o normal em suas manobras
de aproximação.
Na cabine, a troca de informações entre os tripulantes foi feita sem sobressaltos. O tom das conversas foi normal, não indicando uma situação de stress. No entanto, estes seriam os últimos segundos de vida para 50 dos 51 ocupantes do Boeing. O Boeing iniciou a curva-base, última antes de entrar na reta final para o pouso.
Os acontecimentos a seguir se dão em rápida sucessão: são os últimos 30 segundos de vôo para o RG 797, pilotado pelo Cmte. Carneiro.
F/O Figueiredo: Vou manter stand-by nessa freqüência, viu Carneiro?
No segundo seguinte, um dos tripulantes gritou um palavrão. Três segundos depois, soou pela primeira vez o alarme de estol: o Boeing estava voando muito lentamente para a sua configuração naquele instante, sem a utilização dos flaps. Ouviu-se a seguir o som dos motores sendo acelerados, o que desligou automaticamente o alarme de
estol.
O vôo 797 só duraria outros 25 segundos.
Quatro segundos depois, o alarme voltou a soar na cabine, juntamente com o ruído de dois outros alarmes: um que tanto poderia indicar uma eventual discrepância entre instrumentos como de inclinação excessiva da aeronave; soou também o alerta que dispara quando os trens de pouso não estão abaixados e há insuficiente potência nos motores. Isso tudo indica o que acontecia em rápida sucessão com o Boeing: o 707 perdia sustentação durante a curva. Sem a configuração de flap necessária para aquele peso, inclinação e velocidade, o 707 não mais conseguia a sustentação necessária para permanecer em vôo. Literalmente, o 707 começou a cair do céu.
Para complicar a situação, o Cmte. Carneiro voava sem nenhuma referência externa, guiando-se exclusivamente pelos seus instrumentos. Lá fora, noite fechada, sobrevoando uma floresta pantanosa, escura e desabitada, Carneiro não contava com qualquer referência visual: uma luz, uma casa, nada. Carneiro não poderia dar uma rápida olhada para
fora e obter um auxílio visual que o ajudasse a ter plena consciência da altitude e da atitude, do ângulo de inclinação que o Boeing tinha, naquele instante, em relação ao solo.
Se tivesse, certamente teria se dado conta que, em função da baixa velocidade e do fato de realizar a curva justamente sobre a asa que menor sustentação dava ao Boeing, o 707 inclinava-se perigosamente, praticamente voando de lado em relação ao solo, numa curva de quase 90º.
O Boeing não mais conseguia manter-se no ar: faltavam apenas seis segundos de vôo quando ouviu-se na gravação do CVR mais uma aceleração dos motores, ao mesmo tempo que o comandante exclamou, num tom exaltado, claramente assustado com a situação:
Cap. Carneiro: O que está acontecendo aí?
Impotente diante do rápido desenrolar dos acontecimentos, amarrado à sua cadeira postada imediatemente atrás dos dois pilotos, o engenheiro Cardoso respondeu rispidamente:
F/E Cardoso: Nada, porra!
O co-piloto Figueiredo, acompanhando a operação através da leitura dos instrumentos, num tom de pânico, ainda tentou alertar o comandante Carneiro, mas já era tarde demais para ele e para os ocupantes do PP-VJK:
F/O Figueiredo: Olha a altura! Olha a velocidade!
Nesse instante, o Boeing virou de dorso, de barriga para cima. O solo agora aproximava-se velozmente: o nariz do Boeing afundava na direção da floresta. Carneiro, ainda incrédulo com o que acontecia ao Varig 797, gritou, num misto de surpresa e pavor:
Cap. Carneiro: O meu horizonte (artificial) pifou!
Não, o horizonte artificial não havia falhado. Ele simplesmente traduzia a atitude anormal do Boeing, que já havia girado além dos 90º em relação ao solo. E a situação indicava também um fenômeno conhecido como “desorientação espacial” que ocorre quando o piloto não mais sabe em que atitude a aeronave está. Em outras palavras: Carneiro estava perdido enquanto o Boeing que pilotava entrava num mergulho, invertido, rumando direto ao solo a quase 400 km/h.
A última frase emitida por um dos tripulantes do vôo 797 foi um curto comentário do co-piloto Figueiredo, expressada num tom de voz mais para o resignado do que para o apavorado. Ele disse, simplesmente:
F/O Figueiredo: Vai bater.
No segundo seguinte, o Boeing 707 chocou-se contra as grossas árvores da floresta equatorial, desintegrando-se instantaneamente. Os tanques de combustível, ainda cheios, romperam-se imediatamente e uma grande explosão iluminou o céu estrelado da floresta. Em questão de segundos,48 dos 51 ocupantes do Boeing estavam mortos. Milagrosamente, três ocupantes resistiram ao impacto e à explosão e incêndio que se seguiram. Dois deles faleceram durante os trabalhos de resgate. O terceiro, um professor natural da Costa do Marfim, escapou praticamente ileso, único sobrevivente do desastre com o PP-VJK.
O relatório final do acidente não chegou a nenhuma conclusão definitiva. O que se sabe é que um acidente aéreo normalmente acontece quando uma sucessão de erros, falhas e ocorrências se dão numa determinda ordem. Somados, formam a receita para o desastre. No caso do RG 797, podem ser incluídos: uma aeronave antiga, que talvez não
estivesse recebendo a manutenção necessária; a relativa pouca experiência do piloto no comando do tipo; a deficiente integração (Cockpit Resource Management) dos três tripulantes técnicos.
Afinal, se o Cmte. Carneiro deixou o Boeing estolar, seu co-piloto não o alertou a tempo de reverter a situação.
Pode se-citar ainda um fato extremamente grave: o não cumprimento, por parte da Varig, de uma portaria do DAC, que exigia a presença de tripulação composta (dois comandantes, dois engenheiros de vôo, um co-piloto) nos vôos de e para Abidjan.
Só havia, na tripulação técnica do RG 797, três profissionais. É especulação, mas não deixa de ser verossímil que o fim do vôo RG 797 pudesse ser diferente, caso a cabine do Boeing tivesse mais dois profissionais experientes, observando e ajudando na operação de emergência.
Finalmente, os problemas de indicação de instrumentos podem ter sido o fator determinante, que provocou o acidente. Um dos altímetros encontrados em meio aos destroços marcava 1.700 pés e não 30 pés, que era a altitude correta no local do desastre. É fato que o instrumento pode ter ficado com essa indicação errônea como conseqüência do impacto.
Mas isso pode também indicar que houve uma falha na entrada estática do Boeing, o que teria provocado indicações falsas nos instrumentos. Essa é uma hipótese muito remota, pois teria sido certamente percebida ainda durante a corrida de decolagem, no momento do “cross-check” de velocímetros, por exemplo.
O fato é que, em tragédias como esta que vitimou o RG 797 e 50 de seus 51 ocupantes, é muito fácil apontar causas e culpados. O difícil é, por mais técnicas e minuciosas que sejam as investigações, descobrir os verdadeiros culpados. Também é fácil criticar a atuação dos envolvidos. Tão fácil quanto injusto pois, no mais das vezes, eles não
mais estão vivos e, portanto, não podem defender-se.
Resta apenas a triste conclusão de que naquela trágica madrugada, quis o destino juntar a aeronave, os passageiros e tripulantes no final fatídico do vôo 797 da Varig.