MAGAZINE SOUJAR

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Horas de agônia

Horas de agonia

O pânico a bordo, nas histórias sobredois acidentes aéreos e um seqüestro
Ricardo Villela
Claudio Versiani
Fim do seq�estro: um assassinato e manobras nunca vistas com um 737

Um terço da população tem medo de voar e não está nem aí para estatísticas que provam a segurança do transporte aéreo. Essa turma deve manter do livroCaixa-Preta (Editora Objetiva, 352 páginas, 29,90 reais) a mesma distância a que gosta de estar de um avião. A ser lançado nesta segunda-feira, esse trabalho de Ivan Sant'Anna – piloto amador durante 25 anos – traz um relato minucioso de três grandes histórias de pânico da aviação brasileira. Ex-operador da bolsa de valores que já cravou um best-seller com Rapina,Sant'Anna investigou nos últimos três anos duas quedas e um seqüestro de avião. Entrevistou dezenas de sobreviventes e parentes de vítimas, gravou depoimentos, leu bilhetes de despedida escritos à última hora, examinou cartas aeronáuticas e plantas de jatos e estudou relatórios médicos, inquéritos e laudos cadavéricos. No livro, narra os detalhes dos acidentes e o drama vivido nas aeronaves durante as tragédias. O leitor tem a impressão de que o autor estava dentro do avião, assistindo aos acontecimentos, porque Sant'Anna reconstituiu os desastres pelo ponto de vista dos sobreviventes.

O primeiro acidente narrado ocorreu em Paris, a 5 quilômetros do Aeroporto de Orly. Em 1973, um Boeing 707 da Varig com 134 pessoas a bordo pegou fogo em vôo por causa de um cigarro jogado no cesto de toalhas de um dos banheiros. O piloto teve de fazer um pouso forçado a um minuto da pista de Orly. Sobreviveram dez dos dezessete tripulantes e um dos 117 passageiros. A fumaça propagou-se a partir do banheiro criando cenas de horror. Só houve um caso de morte provocada pela queda. Todos os outros mortos foram vítimas de asfixia ou das chamas. Sobreviveram mais tripulantes porque boa parte deles se trancou na cabine de comando, mantendo-se mais isolada da fumaça. Esse acidente matou personalidades como a atriz Regina Léclery, o senador Filinto Muller e o cantor Agostinho dos Santos.
Esse capítulo do livro revela que houve fraude na tradução para o português do relatório das autoridades francesas. O documento original afirmava que os cestos de papéis do banheiro do avião estavam fora das especificações. Na versão divulgada pelo Ministério da Aeronáutica brasileiro constava que os materiais seguiam regulamentos americanos. "O texto divulgado pela Aeronáutica também tem elogios à tripulação, coisa que não aparece no original", diz Sant'Anna.
Cada parte da obra tem mapa, ilustrações e fotografias. Esse recurso ajuda a compreender as manobras feitas pelo piloto protagonista da segunda história, que conta o seqüestro de um Boeing 737-300 da Vasp no trajeto Belo Horizonte–Rio de Janeiro, em 1988. Pouco depois da decolagem, o tratorista desempregado Raimundo Nonato começou a disparar contra a porta da cabine dos pilotos com um revólver calibre 32. Nonato culpava o presidente José Sarney pela penúria em que estavam ele próprio e o Brasil e decidira atirar-se com um jato repleto de passageiros sobre o Palácio do Planalto. Os tiros feriram um tripulante e um passageiro, e o comandante Fernando Murilo de Lima e Silva rendeu-se ao seqüestrador. Uma vez na cabine, Nonato mandou que se tomasse o rumo de Brasília. O co-piloto tentou pegar o rádio de comunicação, tomou um tiro na cabeça e morreu instantaneamente.
Por mais de três horas, o comandante Murilo negociou com o seqüestrador, voando sobre Brasília, Goiânia e Anápolis. Diante da intransigência de Nonato e da possibilidade de ficar sem combustível, chegou a fazer duas manobras quase suicidas tentando desequilibrar e desarmar o seqüestrador. Na primeira, fez o avião girar sobre si mesmo até ficar de ponta-cabeça e retornar à posição original. Depois, um parafuso, deixando-o cair com o nariz para baixo enquanto girava. Essa manobra foi tão brusca que parte do estabilizador do Boeing se desprendeu e caiu sobre um conjunto de casas em Goiânia. Engenheiros da fábrica afirmam que é o único registro de manobra desse tipo com um Boeing 737. As piruetas foram testemunhadas por um caça da Aeronáutica que acompanhava o vôo e contadas pelo comandante Murilo, que, na confusão, acabaria pousando na capital goiana. Em terra, Nonato exigiu um avião menor para fugir, acabou levando três tiros numa cilada e morreu alguns dias depois, internado no Hospital Santa Genoveva, em Goiânia. Como vinha se recuperando bem dos ferimentos, a morte se tornou um mistério que só viria a ser desvendado pelo legista Fortunato Badan Palhares, da Universidade Estadual de Campinas, que autopsiou o corpo e atestou que ele morreu de infecção por anemia falciforme, uma doença congênita.




Paulo Jares
O avi�o do piloto Garcez mergulhado na selva: erro na leitura da rota


Alguns trechos de Caixa-Pretaparecem obra de ficção. Autor de quatro romances, Sant'Anna não resiste ao mais pitoresco na personalidade de alguns personagens. Na terceira história do livro, que narra o caso do avião que caiu na floresta de Mato Grosso em 1989, ao final de um vôo em que o piloto se perdeu sobre a Amazônia, há uma mulher histérica, o bêbado chato, o crente em prece, o sujeito irritantemente calmo, o que depois da queda pergunta quanto foi o jogo do Brasil e uma mulher com bússola que só reza voltada para os pontos cardeais. Nada disso tira a dramaticidade do relato. A Amazônia é uma das raras regiões do planeta sobre as quais se voa, em vários trechos, sem monitoramento. Em 1989, nem mesmo o centro de controle de vôo de Belém tinha radar. O Boeing 737-200 da Varig decolou de Marabá com destino a Belém, mas, por um erro de leitura de rota do comandante Cézar Garcez, tomou a direção oposta. Depois de três horas e meia de idas e vindas, o combustível acabou e Garcez pousou o avião com 54 pessoas a bordo no meio da floresta. Doze morreram. 




Dida Sampaio/ AE
Sant'Anna: bilhetes, laudos e inqu�ritos
Garcez foi um dos protagonistas que se recusaram a dar entrevista para Sant'Anna. O piloto vive em Florianópolis e não quer falar mais sobre o acidente. Sant'Anna compensou a falta do depoimento lendo todas as páginas do inquérito. Garcez foi condenado a quatro anos de prisão, recorreu e aguarda em liberdade o julgamento de recurso. Outro piloto que se recusou a conversar com Sant'Anna foi o segundo comandante do Boeing que caiu em Orly, Antônio Fuzimoto. Num esforço para convencê-lo a falar, o escritor mandou-lhe um pacote com seus livros e recebeu um telefonema pedindo que fosse buscá-los de volta, apenas. A mesma estratégia, contudo, deu certo com Ricardo Trajano, o passageiro sobrevivente do acidente em Orly. Trajano escapou da morte por contrariar orientações da tripulação. Seu lugar era numa das primeiras filas atingidas pela fumaça, mas ele preferiu pousar de pé, encostado à porta da cabine de comando. Um ano depois do desastre, já recuperado, Trajano entrou na loja da Varig no Copacabana Palace, no Rio, e disse para uma perplexa vendedora: "No ano passado, comprei uma passagem para Londres, mas o avião caiu e não cheguei lá. Acho que tenho direito a outra". Levou a passagem.